GRANDE SERTÃO: A VIAGEM


Algumas viagens entram para a história, outras entram também para a literatura. Foi o que aconteceu com o escritor João Guimarães Rosa, quando, há 70 anos, em maio de 1952, ele se lançou numa empreitada pelo sertão mineiro que marcaria sua vida e sua obra.
Acompanhado de oito vaqueiros e levando 300 cabeças de gado, percorreu em dez dias os 240 quilômetros que separam Três Marias e Araçaí, na região central de Minas Gerais, sua terra natal. Trazia amarrada ao pescoço uma caderneta, onde anotava tudo que via e ouvia - as conversas com os vaqueiros, as sensações, as dificuldades e tudo que brotasse daquele mundo que ele reencontrava depois de anos vivendo como diplomata no exterior.
As cadernetas, hoje parte do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, foram reunidas em dois diários, que Rosa chamou de A Boiada 1 e A Boiada 2. As anotações seriam utilizadas como elementos de suas próximas obras - entre elas, Corpo de Baile (lançado em 1956), Tutaméia (de 1967) e Grande Sertão: Veredas (1956).
No dia 16 de maio, o escritor chegava à fazenda Sirga, de seu primo Francisco Moreira, em Três Marias. Três dias mais tarde, a boiada partiria para a viagem, fazendo seu pouso em várias fazendas e vilarejos da região.
Rosa fez questão de acompanhar o dia-a-dia dos vaqueiros em tudo, comendo da mesma comida - carne-seca, toucinho, feijão e arroz com pequi - e dormindo nos mesmos locais. Em Barreiro do Mato, por exemplo, teria dormido dentro de uma grande forma de rapadura, um enorme tacho côncavo, e em vários outros locais passou a noite em colchões de palha de milho, comuns naquela época.
Já próximo a Cordisburgo, cidade em que nasceu e etapa final da viagem, a comitiva teve um encontro com uma equipe da revista O Cruzeiro, que cobria a viagem do já famoso autor de Sagarana, lançado em 1946.
As obras de Rosa possuem uma infinidade de referências diretas e indiretas à viagem de 1952. A principal delas está em Corpo de Baile, mais especificamente na novela "Uma Estória de Amor", inspirada na vida de Manuel Nardy, um dos oito integrantes da comitiva. Ele aparece transfigurado no personagem de Manuel Jesus Rodrigues, o Manuelzão. As semelhanças vão além do nome: estão em acontecimentos da vida do vaqueiro.
Outro vaqueiro que se destacou durante a viagem foi João Henrique Ribeiro, o Zito. Embora não tenha ficado tão famoso quanto Manuel, era Zito quem seguia o tempo todo ao lado do escritor.
Assumiu as funções de guia e de cozinheiro da tropa e tirava quase todas as dúvidas de Guimarães Rosa. Embora não tenha resultado na criação de um personagem, a relação entre Zito e o escritor também teve seu destaque na obra.
A perspicácia do vaqueiro chamou tanto a atenção de Rosa que, anos mais tarde, ele o homenagearia em Tutaméia, lançado no ano da morte do escritor. Em um dos quatro prefácios, Guimarães Rosa transcreve trechos de conversas com o vaqueiro e elogia sua inteligência e criatividade.
Dono de uma memória prodigiosa, Zito guardou detalhes da viagem de Guimarães Rosa que ajudaram a reconstituir cada passo da aventura vivida pelo escritor – incluindo nomes, lugares e datas. “Ele queria saber de tudo. Se visse aquele pau ali, queria saber o nome daquele pau. Se ouvisse uma conversa, queria saber do que a gente falava. E ia escrevendo tudo nas cadernetas que levava penduradas no pescoço”, disse, em 2001.
Segundo o vaqueiro, Rosa teria dito que pagaria seus estudos no Rio de Janeiro, proposta que ele recusou. “Queria mesmo era ser vaqueiro”. Zito morreu aos 65 anos, em 2002, em Três Marias. Foi o penúltimo dos oito vaqueiros da tropa a morrer – o último foi Sebastião Leite, em 2005.

*João Correia Filho.

COMO ESCREVO? - Amadeu de Queiroz


Vou dar uma ideia. Logo que imagino um romance, crio os seus personagens e, antes do mais, faço uma relação de todos eles, com os nomes e as características de cada qual. Assim os personagens começam a existir desde logo. Vão adquirindo personalidade e não me deixam mais um instante sequer.
Como na vida, os personagens de um romance devem existir antes da ação. Devem ser uns tipos comuníssimos, mesmo porque não é possível inventar as figuras de uma obra de ficção. Devem existir, dissimulados em toda gente; devem ter os olhos de um, o talento e o nariz de outro, a astúcia e a feiúra de muitos, a maldade de quase todos. O que sai de minha pena existe por aí, senão na realidade, com certeza na imaginação de muita gente.
Quer saber de uma coisa? Quando escrevo, procuro imitar o incrustador que, aos pedacinhos, faz o admirável conjunto de sua obra. Aplico o mesmo processo aos homens, à paisagem, às paixões, a tudo que possa gerar emoções. 
A emoção não se transmite. O escritor não deve apresentar a sua obra integralmente realizada, nem dar um sentido definitivo às suas palavras, mas incitar, com a sua arte, a arte dissimulada dos leitores, realizada só por eles, conforme a cultura e a sensibilidade de cada um. Sejam o que forem, os escritores, talentosos ou geniais, só conseguirão, com a sua arte, despertar emoções dormentes.
O livro é fonte de emoções sempre novas. Passem as gerações e os leitores continuarão criando os seus mundos, inspirados no mesmo livro, no livro que não morre nem envelhece. Mas também há os leitores pretensiosos. Esses querem a toda força encontrar em nossos escritos intenções que jamais tivemos.
Acontece, às vezes, que me vem à lembrança uma palavra qualquer, que me parece expressiva ou interessante. Sinto um desejo enorme de utilizá-la. Então componho uma frase em que ela fica em bastante destaque. Feita a frase, corrijo-a, deixo-a bem apurada e aplico-a a um sentimento, a uma paisagem, a um tipo. Depois, acomodo-a a uma história.
O leitor não conhece essas ginásticas de trampolineiro. Supõe a criação enorme, descendo para a exiguidade da palavra. Portanto, já então, eu saí do meu rumo para cair no do leitor. E, assim, quanto mais incompreensível me apresento, mais engenhoso ele se torna para interpretar-me. E chega ao ponto de descobrir intenções que não tive, símbolos de que não me servi, argúcias filosóficas de que nunca dispus.

O ROMANCE NEO-REALISTA EM PORTUGAL

A denominação Neo-Realismo nos sugere a volta da moda realista, mas, em se tratando de Literatura, é claro que não pode haver um “retorno” d...